Vacuidade
02/10/2015 - 01/11/2015
Um ocidental, distante da tradição budista, o sentido da palavra vacuidade é incompreensível e isso pela simples razão de vivermos sob uma lógica que nos impele a jamais pararmos de gerarmos pensamentos. A todo instante elaboramos um encadeamento de ideias, de sentimentos, de imagens mentais que nos impedem de sequer admitir a possibilidade de nosso cérebro parar de pensar nem que seja por um brevíssimo lapso de tempo.
Compreender o sentido do estado de vacuidade requereria ao menos uma disposição para perceber o funcionamento de nosso corpo, acalma-lo, senti-lo. Para o monge Ajahn Buddhadasa, na vida de todo mundo, mesmo daqueles sem qualquer treinamento, há um momento muito curto, quando a mente está livre, quando a mente está sem qualquer sentimento de positivo ou negativo, quando a mente não está agarrando nada como ‘bom’ ou ‘mau’. E essa é a felicidade mais alta alcançada, quando a mente é completamente liberta de todas as coisas que têm poder sobre ela, que a influencia, que a apanha em armadilha, que empurra seus botões e assim sucessivamente[1].
Não é por outra razão que o título da instalação fotográfica de Adriana Amaral é Vacuidade. Ali nos vemos diante de um vazio, de um silêncio. Pouco ou quase nada temos a falar sobre o que vemos. São três fotografias montadas uma ao lado da outra em um ambiente escurecido. Cada uma apresenta a frontalidade de uma janela cuja paisagem exterior é vista por meio de uma espécie de grid. O verde das plantas é então esquadrinhado e percebido através dos vidros embaçados pelo tempo. A vista da janela não oferece um mundo em perspectiva.
O trabalho de Adriana Amaral coloca-nos diante de um outro modo de percepção das coisas, a partir de um estado de suspensão em que nada apresenta-se como tangível. O silêncio que atravessa as imagens parece dizer respeito a um tempo que nunca mais poderá repetir-se existencialmente a não ser por meio de fotografias. Por essa razão Roland Barthes define o espaço da imagem fotográfica como o lugar, por excelência, do particular absoluto, da contingência soberana: “Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa: ela reduz sempre o corpus de que tenho necessidade ao corpo que vejo”. Ainda segundo Barthes, para designar a realidade, “o budismo diz sunya, o vazio; mas melhor ainda, tatbata, o fato de ser tal, de ser assim, de ser isso; tat quer dizer em sânscrito isso”[2].
O isso a que faz referência o trabalho de Adriana Amaral aponta para o próprio lugar representado: as janelas com vista esquadrinhada de um jardim. Aponta para o modo como Adriana investe na densidade dos afetos, como trilha um percurso em que o desafio está em ver-se diante de si mesma e de sua relação com o mundo.
Em 2013, a artista realizou Dias e Noites, em que reuniu fotografias, instalações, uma projeção de filme Super 8 e objetos, todos ocupando a casa onde viveu por 40 anos com seus pais. As fotografias, em especial, foram realizadas na casa meses antes de ser tomada a decisão de encontrar outro lugar para seus pais viverem. A exposição tratava do significado simbólico implicado na ideia de não mais habitar aquela casa com todas as memórias ali resguardadas e, ao mesmo tempo, da ruptura, do desapego necessário para perceber-se como não mais pertencente àquele lugar.
Vacuidade vem em seguida e traz a densidade de um silêncio e a profundidade do vínculo da artista com seu entorno. A casa já não é mais a casa. Agora tornou-se memória afetiva de um lugar de vida. O silêncio - aquele brevíssimo lapso de tempo ao qual a artista se permite – está impregnado na imagem fotográfica, na imanência do tempo capturado.
Carolina Soares
[1]http://nalanda.org.br/incompreensoes/compreendendo-a-vacuidade
[2]Roland Barthes. A Câmara Clara, Edições 70, Lisboa, 2006.